“Quando o socialismo for estabelecido, chegaremos ao sublime neste gênero. No reino da igualdade, e ele se aproxima, esfolarão vivo tudo que não estiver coberto de verrugas. De que vale para a massa a Arte, a poesia, o estilo? Ela não tem necessidade disso.” — Flaubert, 20 de junho de 1853
Não é de meu feitio ler jornais. Mas, há alguns dias, me deparei com a manchete: “Itamar, Ernaux e Ferrante são interessantes, mas não literatura, diz Aurora Bernardini”. Gargalhei com a certeza de que aquela simples opinião causaria burburinho na sociedade primitiva que é o meio literário brasileiro. Fechei a matéria — muito mal redigida, por sinal — sem imaginar o tremor de terra que estaria por vir.
Ao longo da semana seguinte, seria de se esperar que toda uma gama de blogueiros, booktubers e outros palpiteiros de profissão fossem dar pitaco sobre o assunto. Mas que editoriais de jornal e grandes editoras fossem embarcar na histeria coletiva, isso me causou algum espanto (não deveria, mas causou).
Assim, vejo-me obrigado a escrever estas breves linhas, não em defesa das opiniões da sra. Bernardini, nem em ataque aos referidos ídolos de pés de barro; quanto a esses, o leitor já sabe de meu juízo.
O primeiro ponto digno de nota, antes de outras observações sociais, é que quase todas as difamações veladas, dirigidas à sra. Bernardini, fazem questão de lembrar-nos de sua idade, como se seus oitenta e quatro anos fossem demérito. Ad hominem dos mais baixos, mas talvez aqueles que se utilizam dele prefiram a única alternativa à velhice. Diante disso, onde estão os ideólogos indignados, denunciando o etarismo contra uma mulher idosa? Ou isso só é exigível quando se trata de sex symbols decadentes, exauridas de qualquer valor para a sociedade, feito Vera Fischer, cuja fama se deveu mais à sua pregressa beleza do que a seu talento artístico? Quando não convém à causa, a militância polilogista some.
Já a sra. Bernardini tem, no ofício das letras — como tradutora e professora —, mais décadas do que eu conto de vida; merece, só por isso, o mais alto grau de civilidade no trato. E concordar ou discordar dela é totalmente irrelevante, pois deve-se ter em vista primeiro os fatos; e indignar-se com as meras discordâncias alheias é, para dizer o mínimo, um traço infantil de personalidade.
Dentre os mil e um gritos birrentos contra uma estudiosa — já ouvi, eu mesmo, muitos deles — notamos curiosas reações histéricas. O público, inconsciente de que a palavra ‘cão’ não morde, reage emocionalmente a simples signos verbais, como se diante de uma ameaça física, risco de morte. Sente sua própria “existência” ferida, agredida diretamente em sua “fé”, ou sistema de crenças, que justifica a personalidade malsã. É que essa personalidade se agarra a símbolos externos para se manter à deriva, feito o náufrago que se apega a sua tábua de salvação. Esses símbolos frequentemente são totens daquela fé, condensados em filmes, séries, obras literárias, palavras de ordem. Aceitar uma premissa diferente seria afundá-los com o mero toque da realidade concreta.
A maior parte dos pretensos refutadores da sra. Bernardini sequer passou da manchete, pois argumentos e fatos não os interessam. E, ainda que as palavras da crítica tenham sido adoçadas e todos os pedágios pagos em dia, a fé revolucionária não permite dissidência: a unanimidade deve ser absoluta.
O mais interessante é ver, entre os que gritam, supostos acadêmicos, indivíduos diplomados, com pós-graduações. São militantes, não teóricos, nem estudiosos. As humanidades, nas universidades de todo o Brasil e do mundo, não têm mais a ver com Teoria, Filosofia ou Ciência, mas com uma religião pós-moderna, que regride a civilização diretamente para um tempo mitológico, pré-socrático, no qual professores, críticos e opinadores letrados se tornaram os sacerdotes duma nova teologia. Não importam os fatos, importa apenas aquilo que corrobora com uma determinada visão ideológica.
Sucintamente, para que uma teoria seja considerada enquanto tal, deverá, além de descrever, explicar a natureza dos fatos. A pretensa teoria que para na mera descrição dos fatos incorre no erro do formalismo; a análise não serve a si mesma, mas a fases posteriores do conhecimento. Já aquela que pretende ser normativa, em vez de explicativa, não é teoria, mas ética, política ou religião travestida. Um dos exemplos mais patentes é o das teorias econômicas que se apresentam como descrição neutra do mercado, mas que, na realidade, estão repletas de premissas ideológicas sobre o que é justo ou ideal (socialismo, comunismo, distributismo, fascismo, keynesianismo, etc.). Estão repletas de dogmas, não de ciência (em lato sensu), conhecimento de fato.
Ideologias — como a marxista, racial, wokista, etc. — fazem precisamente o que acusam outras correntes de pensamento de fazerem: buscam sua perpetuação — e da “classe” que as originou — através de teorias sem conteúdo real, discursos meramente formais, sempre em nível retórico, que servem como suporte para o mito fundamental daquelas mesmas ideias. E assim, corrompem e matam tudo o que há pela frente, feito um veneno que se espalha pelos rios.
Portanto, se a opinião de Aurora Bernardini faz referência a algo que os leitores da Folha ignoram — afinal, seria de se esperar que, com cinquenta anos de carreira, ela dissesse algo que o leitor médio não compreendesse — pouco importa, contanto que sirva para a propaganda da agenda política do momento, que já não será a mesma da próxima década, pois a revolução sempre se reinventa, mas não sem antes tentar imolar aqueles que se opõem a ela.
O único erro da sra. Bernardini foi achar que poderia mexer, sem consequências, na vaca sagrada da plebe, nem que fosse para fazê-la ir pastar longe dos campos da Literatura de verdade.
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