Uma espinha no nariz da Literatura Russa

Estive refletindo sobre Dostoiévski: como pode um homem escrever tão mal, inacreditavelmente mal, e te fazer sentir tão profundamente? — Ernest Hemingway

I – O JUÍZO FINAL DA HUMANIDADE

Na crítica, não se pode haver juízos preconcebidos ― ou seja, preconceitos ― com relação a um autor e sua obra, sejam eles negativos ou positivos; isso é o máximo de “isenção” que podemos exigir de um crítico. Muitos dos que se arrogam dessa suposta isenção crítica não somente não a possuem, como partem da mera repetição das opiniões emitidas anteriormente por outros literatos (críticos ou teóricos), sem jamais tê-las entendido ou examinado-as criteriosamente. Neste momento, ajo com uma dupla responsabilidade: de crítico e de escritor. De crítico, pois tenho o dever de interpretar uma obra literária à luz de toda a literatura que li e estudei; de escritor na medida em que me aprofundo nos problemas que envolvem meu campo: a criação literária (poética).

O que será examinado aqui não são “meras” questões de estilística, próprias aos estudos da língua, juízos de gosto ou problemas linguísticos de tradução. Embora esses fatores sejam levados em conta, não é esse o foco desta investigação; tento ao máximo mostrar um panorama geral dos problemas periféricos e focar nos problemas de poética propriamente dita. Partiremos primeiramente sobre algumas considerações sobre estilo.

Estilo, de modo sucinto, é a própria expressão, sendo esta uma transposição das percepções da realidade em palavras, no caso da literatura, em cores e matéria, nas artes plásticas, em som, na música, ou em gestos e ações, nas artes cênicas. Estilo, então, é o modo como o artista transpõe aquela realidade ― com sentimentos, percepções e experiências ― para o meio em que opera a arte, individualizando sua criação. Logo, é natural que haja estilos mais bem feitos e menos bem feitos que outros e que, para que se possa perceber essa gradação, é preciso que se tenha um parâmetro do que já foi feito.

Um estilo vazio é aquele que pretende expressar muito, mas comunica pouco, logo percebe-se a falta de substância do escritor e podemos descartá-lo como má literatura. Mas um estilo ruim, descaradamente ruim, com um suposto “bom conteúdo e qualidade filosófica”,  poderia se salvar? Nos diz Albalat que continua sendo má literatura:

Portanto, a forma e a ideia constituem uma só coisa. Não se pode, em geral e de maneira definitiva, tocar numa sem alterar a outra. Quando se diz de um fragmento: ‘a ideia é boa, mas a forma é má’, isto nada significa, porque o valor da forma é o que torna boa a ideia. Deveria dizer-se: ‘a ideia poderia ser excelente, se a forma fosse boa’, pois é a forma que faz valer a ideia”.

[“A Arte de Escrever em 20 Lições”, Antoine Albalat, trad. Cândido Figueiredo, ed. Vide Editorial]

Obviamente a perfeição é inatingível, porém não devemos parar de buscá-la; o artista menos ainda. A busca por harmonia, integridade e clareza é fundamental para a representação da condição humana, portanto, o que se deve julgar, numa obra de arte, é a capacidade de se transmiti-la. Nas palavras de Northrop Frye, a literatura é por natureza o apocalipse da humanidade, uma revelação do homem para o próprio homem, e a consciência dessa revelação é um juízo final da humanidade. Não devemos julgar, portanto, o que um artista escolheu retratar, sendo a inclinação para certos temas um reflexo de sua própria natureza e personalidade individual. Se ele escolheu retratar a lama do pecado original ou as elevações do Paraíso, isso nos é indiferente; o que devemos julgar é a qualidade do retrato, não do objeto retratado.

II – CLÁSSICOS IMPRÓPRIOS

Ao nos depararmos com os clássicos da literatura, notamos que uma minoria se elenca nesse rol por méritos realmente literários, e que a maioria é tida como tal por uma velha mania acadêmica de rotular qualquer tipo de registro escrito ― histórico, sociológico ou mesmo filosófico ― sob a classificação de literatura. É verdade que a produção escrita de um país, ou suas “letras”, converge para a história cultural de sua nação, e muito dessa história se perderia sem esses registros escritos. Ninguém nega esse tipo de importância cultural em certos livros, mas daí tomá-la como sinônimo de importância artística, é no mínimo uma falácia lógica. Há livros extremamente bem escritos que podem ter grande impacto cultural, mas há os que não terão nenhum. O educador americano Mortimer Adler pôs sob o título de “The Great Books” os livros que julgou terem maior impacto na civilização ocidental, a despeito da qualidade (inclusive filosófica). Prevaleceu a importância histórica. Portanto, não seria absurdo admitirmos que popularidade, ou impacto cultural, não necessariamente tem a ver com qualquer qualidade que seja.

Faço a distinção entre clássicos próprios e impróprios da literatura; próprios por serem reconhecidos pelas qualidades próprias da literatura; impróprios, por serem exaltados por qualidades que não são próprias da arte. Dostoiévski, ao meu ver, se encaixa precisamente nesse segundo tipo de autor.

Muitos não entenderão com clareza minhas críticas, perguntarão de aspectos impróprios da literatura, arguirão defesa valendo-se de uma leitura distante, etc.(poupo os leitores da ladainha). Faço minhas as palavras de Vladimir Nabokov:

Minha posição em relação a Dostoiévski é curiosa. Em todos os meus cursos abordo a literatura a partir do único ponto de vista que interessa — a saber, o da arte duradoura e do talento individual. Dessa perspectiva, Dostoiévski não é um grande escritor, pelo contrário, é bastante medíocre — com lampejos de excelente humor, mas, infelizmente, separados por oceanos de platitudes literárias. […] Minha dificuldade, contudo, é que nem todos os leitores com quem converso nesta e em outras salas de aula não são experientes. Diria que ao menos um terço deles não conhece a diferença entre a literatura real e a pseudoliteratura, e a esses Dostoiévski pode dar a impressão de ser mais importante e mais artístico do que os autores de porcarias dos gêneros dos romances históricos norte-americanos ou ‘A um passo da eternidade’.

Todavia, como estou analisando em profundidade uma série de artistas realmente grandes, é nesse nível que Dostoiévski será criticado. […] Estou mais do que pronto para arrasar com Dostoiévski, mas compreendo que as pessoas que não tenham lido muito possam se sentir confusas com os valores implícitos em minha análise.”,

[“Lições de Literatura Russa”, Vladimir Nabokov, trad. Jorio Dauster, ed. Três Estrelas]

Utilizarei parâmetros muito similares aos de Nabokov, em seu “Lições de Literatura Russa”, para criticar Dostoiévsk. Muitos têm Dostoiévski por bastião inabalável da literatura russa, e entram em choque ao descobrir críticas ao autor, mas  a verdade é que, desde sua publicação no século XIX, ele tem sido alvo de críticas bem mais severas que as minhas. Só para exemplificar, Turguêniev, contemporâneo dele, chamou-o de “uma nova espinha no nariz da literatura russa”, e dizem que Tolstói também nunca deu muita importância para Dostoiévski. Claro, os mais idólatras do autor sempre aparecem com uma ou outra alegação de que posteriormente Turguêniev fez as pazes com Dostoiévski, ou que Tolstói supostamente carregaria um exemplar de “Os Irmãos Karamázov” debaixo do braço antes de morrer (essa alegação carece de fontes, pois procurei incessantemente por quaisquer menções nos diários e cartas de Tolstói, sem êxito). Seja como for, essas pessoas não sabem a diferença entre utilizar o argumento de uma autoridade, para corroborar com os fatos, de uma falácia de argumento de autoridade. Não nos interessa o que A ou B disse sobre determinado assunto, nos interessa saber se a opinião de A ou de B em algo nos ajuda para chegarmos à verdade dos fatos, mas eu divago.

Como eu disse anteriormente, analisaremos conceitos próprios à Arte, partindo do domínio poético e técnico, excluindo o juízo com relação à moral, ideias filosóficas ou ideologias que o artista escolheu retratar. Diante do tamanho da obra de Dostoiévski, logo, da impossibilidade analisar todos os aspectos de toda a obra do escritor em uma única crítica, pairaremos sobre algumas questões principais encontradas na maioria dos textos dele (parece sandice ter de explicitar isso, mas há os leitores que exigem esse tipo de coisa, inconformados com a crítica negativa que abalou a imagem de seu autor preferido…).

Um fato digno de nota é que, no século XIX, o romance era ainda uma arte indefinida, assim como o conto e a novela (ou seja, os três gêneros da prosa ficcional). Não é o intuito deste breve ensaio discorrer sobre o surgimento, evolução e consagração dos gêneros tais quais conhecemos hoje. Basta saber que a poesia e o teatro estavam há muito consagrados em sua forma e qualidade. O romance, não. Era uma arte feita para as massas, por escritores menores que, na visão geral, não obtiveram sucesso nas chamadas “grandes artes”. O grande gênio que veio para mudar o panorama da prosa foi Gustave Flaubert. Antes dele, claro, tínhamos alguns expoentes na prosa (Cervantes, por exemplo), que realmente fizeram grande arte, mas ainda não era a prosa de ficção com técnicas e moldes que temos hoje. A forma e estrutura de um “Dom Quixote”, por exemplo, diverge bastante de um “Madame Bovary”, sendo mais uma coleção de episódios sem muito nexo causal entre um e outro do que uma obra estruturada com uma unidade aristotélica; daí a distinção entre romances de cavalaria (ou novelas) e romance moderno. Depois, também tínhamos os nomes mais diversos, utilizando o romance mais para a difusão de ideias do que para contar uma história: Goethe, Voltaire, Victor Hugo, Dickens, Balzac e Dostoiévski. Até hoje esses autores devem ser os que mais contribuem para a confusão acerca da questão “o que é um romance e para que serve”. Goethe estava mais para uma tentativa de filósofo fantasiado de romancista, Voltaire era um mero jornalista panfletário, Balzac um best-seller das massas (95 livros só na Comédia Humana deveriam ser evidência da falta de qualidade) e Hugo, que chegou a ser prefeito de Paris, um panfletário socialista que se perdia no melodrama social. Já Dostoiévski é algo entre o melodrama de Hugo e os folhetins de Balzac, obtendo êxito na proposta. Ao menos Hugo escrevia bons poemas líricos.

Seja como for, o Romance é, ao menos para mim, um confrontamento da condição humana ― isto é, a representação dos tipos humanos em situações dramáticas ― numa realização técnica da Beleza. As demais qualidades são meramente acidentes.

III – BREVE NOTA SOBRE TRADUÇÕES

Antes de nos aproximarmos do texto, mais uma advertência: ao se analisar o estilo de um romance traduzido, não levaremos em conta o estudo gramatical da língua em que ele originalmente foi escrito (aliás, isso sequer seria um estudo artístico, mas linguístico). A beleza da prosa de ficção reside mais no uso das técnicas literárias do que simplesmente na feição estilística da língua (que, por óbvio, varia de idioma para idioma). É óbvio que a feição estilística da frase influenciará em como o artista de fato representou o objeto, e que esse elemento tem, sim, grande peso para a qualidade artística. Porém, o bom tradutor versará em outro idioma uma transposição que simula a estilística da língua original, não só gramaticalmente, mas também esteticamente. Obviamente, certos elementos sonoros, ironias, jogos de palavras e ritmos se perderão nessa transposição; porém, isso é mais danoso à tradução da poesia lírica que aos gêneros narrativos. Roger Scruton nos dá um bom lembrete quanto a esse fator:

Se associamos demais a beleza de um romance ao seu som quando lido em voz alta, temos de considerar a tradução do romance como uma obra de arte inteiramente diferente do romance na língua original. Isso seria negar tudo o que é realmente interessante na arte do romance: o desenrolar de uma história, o modo controlado de libertar a informação sobre mundos imaginários e as reflexões que acompanham o enredo e que reforçam o significado deste.

[“Beauty”, Roger Scruton, ed. Oxford University Press, tradução livre]

Portanto, cai por terra a falácia de que “não se pode criticar uma obra literária senão em seu idioma original” (como já ouvi diversas vezes desde a primeira publicação deste artigo). Se um juízo negativo fosse vedado a quem lê a obra numa tradução, então, de igual modo, não se poderia elogiar um romance com base em sua tradução, pois o que teríamos seria apenas uma elogio à tradução, e não à obra original. Por essa lógica, você precisaria ser um poliglota para realmente aproveitar qualquer tipo de obra literária. Nem preciso dizer o quão estúpidas são essas tentativas de refutação a críticas; é, como disse Scruton, negar tudo o que realmente interessa na arte do romance.

IV – HOMENS DOENTES

Comecemos nossa análise próxima (close reading) com o trecho inicial de “Memórias do Subsolo” ― ou “Memórias de um buraco de rato”, segundo Nabokov ―, pois este livro é amplamente reconhecido pela crítica como um concentrado de elementos dostoievskianos.

“Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo um níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo: bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina (sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso). Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a ‘pregar peças’ nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se o fígado me dói, que doa ainda mais.”

[“Memórias do Subsolo”, trad. Boris Schnaiderman, ed. 34]

Não sabemos exatamente do que o narrador está falando por toda a primeira parte do livro. Temos um longo monólogo pseudofilosófico e completamente abstrato que não mostra absolutamente nada por mais de 50 páginas. Acontece que aqui, e em vários momentos da obra de Dostoiévski, a “grandeza” ― mais ou menos feito a da filosofia de Nietzsche ― reside na superinterpretação subjetiva de seus leitores, não na força da representação: como o que está escrito é amorfo e obscuro, é quase impossível identificar precisamente a qual experiência originária o autor se refere, pelo próprio texto, de modo que o observador mais ávido em busca de sentido imprimirá uma série de significados a partir de sua própria subjetividade, não necessariamente do que pode ser apreendido pelo texto. O texto dostoievskiano, portanto, não é dramático, mas melodramático: busca comover pelo exagero na expressão dos sentimentos, enquanto a expressão é, em si mesma, débil. Os signos e significados não correspondem necessariamente a um elemento da realidade concreta, intenção originária do autor, mas a diversos referentes possíveis na mente do leitor. Não se trata de um texto rico em possibilidades interpretativas ― cujo limite sempre escapará à intenção inicial do artista ―, trata-se de um texto vago cuja experiência primária é quase irrastreável. Mas caso esse mesmo leitor olhe o texto com mais ceticismo, pouco encontrará com o que se encantar, até porque a voz do cantor desafina. Em Dostoiévski, na maioria das vezes, as emoções são sugeridas pela retórica do texto, mas não pelo drama inerente a ele. Ao menos esse é o caso latente em “Memórias do Subsolo”, como aponta Boris Schnaiderman, em tom elogioso, no seu prefácio à obra:

Em Problemas da poética de Dostoievski (livro do qual há uma tradução muito boa para o portugués, realizada por Paulo Bezerra), Mikhail Bakhtin mostrou admiravelmente como toda a novela ficou estruturada sobre uma confissão que se constrói na expectativa da palavra do outro. Mas, se a análise de Bakhtin é realmente magistral, ela deixa apenas subentendido o fato de que, ao mesmo tempo, o “paradoxalista” fica polemizando com autores e opiniões correntes na época.

A crítica textual russa já definiu, em pormenor, as brigas em que o personagem toma parte. Mas, se o ponto de partida é sempre ou quase sempre um fato tirado de jornais ou livros do momento, na realidade a discussão tem um caráter mais geral e elevado. O caso particular, como ocorre frequentemente em Dostoiévski, traz implícita a referência a uma problemática filosófica. Assim, a contestação da frase ‘dois e dois são quatro’ baseia-se em artigos então aparecidos em periódicos, mas evidentemente a argumentação do personagem volta-se contra todo o racionalismo ocidental.

Quando a novela saiu, não se percebeu o seu alcance. A única reação imediata, além de algumas notas venenosas, foi uma paródia perversa […]. Leram a novela como um panfleto nacionalista, sem perceber que ela transcendia esta contingência. Tem-se assim um exemplo bem claro de como os contemporâneos muitas vezes são os piores intérpretes de uma obra.”

[“Memórias do Subsolo”, ibidem.]

Em outras palavras, o tradutor diz algo bastante claro: os textos de Dostoiévski, muitas vezes, não trazem em si mesmos os elementos necessários para que o leitor os interprete. Antes, recorrem a algum elemento extra-textual para que se possa identificar o significado real da representação. Não é assim que funcionam as boas narrativas ― ou artes imitativas ―, que seguem regras muito antigas, anteriores ao próprio Aristóteles. É preciso recriar poeticamente o universo ficcional sem apelar para o que quer que esteja fora do texto. Num monólogo artístico (não monólogo filosófico), o meio mais eficaz de se evocar lirismo e sentimento é através da imagética (fanopeia, no vocabulário de Pound). Aprendi desde cedo, com Shakespeare, o valor de imagens fortes num monólogo. À primeira vista, o monólogo dostoievskiano impressiona alguns pela grandiloquência, que pode até funcionar para a retórica inflamada dos folhetins, mas sempre é péssima literatura. Uma imagem vale por mil palavras, diz o ditado. Vejamos então o monólogo de Macbeth, no ato V, cena V (tradução própria):

O amanhã, o amanhã, o amanhã,
Se arrasta nestes passos mesquinhos dia após dia,
Até a última sílaba do tempo que se recorda
E todos os nossos ontens iluminaram aos tolos
O caminho da empoeirada morte.
Apaga-te, apaga-te, vela fugaz!
A vida não é mais que uma sombra passageira, um pobre ator
Que se empavona e grita em sua hora de palco
E então não mais é ouvido. É uma história
Contada por um idiota, cheia de som e fúria,
Significando nada.

[“Macbeth”, ato V, cena V , Shakespeare, tradução livre]

O monólogo é lógico e linear, seja no teatro ou na literatura, a personagem fala para outro ou para si numa ordem mais ou menos coerente. Porém, um monólogo artístico requer, além de profundidade dramática e filosófica, o uso de imagens concretas. Em Literatura, imagem é a imitação da forma das pessoas em ação ou de objetos que representem simbolicamente um estado emocional com fins estéticos. Pode haver ainda, para que a representação se torne mais palpável, o uso da sinestesia, ou seja, a combinação de sensações diferentes (sons, cores, odores) numa impressão. Nos lembra Othon Garcia, em seu “Comunicação em Prosa Moderna”, que: “em psicologia, a palavra imagem designa toda representação ou reconstituição mental de uma vivência sensorial, que pode ser tanto visual – caso mais comum – quanto auditiva, olfativa, gustativa, tátil, ou mesmo totalmente psicológica”. Então, são exemplos de imagens literariamente concretas: o arrastar dos passos mesquinhos dia-após-dia, a chama da vida que se apaga, a poeira da morte, o ator empavonado que grita para uma plateia vazia; vemos e sentimos as metáforas, a incapacidade do homem a cada palavra. Esses elementos são responsáveis por dar profundidade dramática ao texto.

Os símbolos e metáforas devem ser pensados e falados através de imagens concretas, cujos contornos são nítidos e firmes, sendo o mínimo possível conceituais ou abstratos. Eles devem selecionar apenas o essencial da condição humana para que não percam a força caindo na sobrecarga estética ou grandiloquência. Em muitos casos, a metáfora e o símbolo dispensam o discurso analítico, típico da filosofia.

Para ater-me à literatura russa, utilizarei um trecho com temática similar, em “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, onde vemos a imitação ― no melhor sentido aristotélico (mimesis) ―  de um homem doente:

“Não se poderia dizer como foi que isso aconteceu no terceiro mês da doença de Ivan Ilitch, porque isto se deu passo a passo, imperceptivelmente, mas aconteceu que a mulher, a filha, o filho, os criados, os conhecidos, os médicos, e sobretudo ele mesmo, souberam que todo o interesse que ele apresentava para os demais consistia unicamente no seguinte: se não demoraria muito a desocupar finalmente o seu lugar, a livrar os vivos da opressão causada pela sua presença, e a livrar-se ele mesmo dos seus sofrimentos.

Dormia cada vez menos; davam-lhe ópio e começaram a injetar-lhe morfina. Mas isso não o aliviava. A embotada angústia, que ele experimentava no estado de semi-inconsciência, a princípio somente o aliviava como algo novo, mas depois ela se tornou igual ou ainda mais penosa que a dor pura e simples.

De acordo com o prescrito pelos médicos, preparavam-lhe alimentos especiais; mas estes tornavam-se cada dia mais insípidos, mais abjetos.

Foram feitas também adaptações especiais para as suas excreções, e cada vez isto constituía um sofrimento. Sofrimento por causa da sujeira, da indecência e do cheiro, da consciência de que outra pessoa devia ter participação naquilo.

[“A Morte de Ivan Ilitch”, trad. Boris Schnaiderman, ed. 34]

E mais adiante, no capítulo seguinte, em um breve monólogo interior:

Passaram-se mais duas semanas. Ivan Ilitch não se levantava mais do divã. Não queria ficar deitado na cama e jazia no divã. E deitado quase todo o tempo com o rosto contra a parede, sofria solitário sempre os mesmos tormentos sem escape e pensava solitariamente o mesmo pensar insolúvel. O que é isto? Será, de verdade, a morte? E a voz interior respondia: sim, é verdade. Para quê esses sofrimentos? E a voz respondia: à toa, sem nenhuma finalidade. E nada mais existia além disso.

[“A Morte de Ivan Ilitch”, ibidem.]

Notamos duas diferenças entre os textos de Dostoiévski e Tolstói; em “Memórias do Subsolo”, temos uma doença moral, o Homem Subterrâneo é um homem vil, enquanto a doença de Ivan Ilitch é uma doença metafórica. Ivan Ilitch sente as dores da mediocridade, da mesquinhez materialista da vida burguesa que levou e de sua própria impotência física. Toda a novela é uma metáfora para a redenção do homem que, ao fim, vence o medo da morte. Em contrapartida, Dostoiévski nos mostra a decadência, o que, por si, teria para alguns sua Beleza, não fosse a forma defeituosa. Em linhas gerais, a primeira parte de “Memórias do Subsolo”, dividida em onze capítulos, é um grande e confuso monólogo que busca representar uma mente caótica, neurótica, frustrada e infeliz de maneira caótica, neurótica, frustrada e infeliz. Dostoiévski o faz pela repetição incessante de palavras, frases, enchendo o texto de vulgaridades e frases feitas, discursos melodramáticos e banais; elementos que representam o estilo de Dostoiévski em quase todas as suas obras. Seus admiradores comumente o defendem dizendo que ele “retratava de maneira confusa coisas confusas”, mas deveria ser óbvio que esse tipo de falácia implica em arte feia, não na arte do feio (que retrata a feiura, mas que é bela na representação). Vejamos melhor do que estou falando num trecho de “Os Irmãos Karamázov”.

V – O ESTILO (OU A FALTA DE)

A primeira mulher de Fiódor Pávlovitch era do ramo bastante rico e nobre dos Miússov, também fazendeiros de nosso distrito. De como foi acontecer que uma moça com dote, além de bonita, e ainda por cima daquelas inteligências vivas, muito frequentes em nosso país na geração atual mas também encontradas no passado, pôde casar-se com tão insignificante ‘fuinha’, como todos o chamavam, não vou dar maiores explicações. É que, ainda na penúltima geração ‘romântica’, conheci uma moça que, depois de vários anos de um amor enigmático por um homem, com quem, aliás, sempre pôde casar-se da maneira mais tranquila, acabou, não obstante, por inventar ela mesma obstáculos insuperáveis, e numa noite de tempestade lançou-se de uma margem alta, semelhante a um penhasco, em um rio bastante fundo e veloz e ali morreu devido terminantemente aos próprios caprichos, com um único fito de se parecer com a Ofélia de Shakespeare, tanto que, se esse penhasco, que ela havia observado e tornado seu predileto fazia tanto tempo, não fosse lá tão pitoresco e em seu lugar houvesse apenas uma prosaica margem plana, é possível que nem tivesse havido nenhum suicídio. Trata-se de um fato real e é de pensar que em nossa vida russa, nas últimas duas ou três gerações, não houve fatos iguais ou congêneres. De modo semelhante, a atitude de Adelaída Ivánova Miússova foi, sem dúvida, um eco de sopros alheios e também a excitação de uma ideia prisioneira.

[“Os Irmãos Karamazov”, trad. Paulo Bezerra, ed. 34]

Num só parágrafo temos duas citações: uma mais óbvia, que de tão lugar comum virou banal, da Ofélia de Shakespeare, a outra de um verso de um poema de M. Yu. Liérmontov, de 1839, “Não creias, jovem sonhador,/ Teme como chaga a inspiração…/ Ela é o delírio penoso de tua alma enferma/ Ou da ideia prisioneira de uma excitação”. Em questão de ensaios, convém citar ou parafrasear outros autores, porém a prosa de ficção não é ensaio, as regras são outras. Além disso, é mais que evidente o estilo obscuro, cheio de conjunções, carregado de sinais gráficos, aspas, travessões.

Utilizar aspas para fazer uma palavra funcionar, seja ela em forma de ironia ou não, significa que a palavra não funciona. Diz Tchekhov, numa carta:

Aspas são usadas por duas categorias de escritores: os tímidos e os que não têm talento. Os primeiros assustam-se com a própria ousadia e originalidade, os outros, quando metem entre aspas uma palavra qualquer, estão querendo dizer com isso: repare, leitor, que palavra nova, original e ousada eu inventei!”.

[Carta a Aleksandr Lázariev (Gruzínski), Moscou, 20 de outubro de 1888; em “Sem Trama e Sem Final”, ed. Martins Fontes]

Sobre conjunções e as locuções conjuntivas (mas, contudo, porém, pois, portanto, não obstante, por conseguinte…), em geral têm efeito similar ao de uma solda numa barra de ferro: são saliências desagradáveis, rudes, que saltam demais na frase. Convém utilizá-las com parcimônia, mesmo no ensaio, em qualquer língua (aos apressadinhos, a seguir, veremos o depoimento dos tradutores do russo a respeito do assunto, já aqui que estamos trabalhando por analogia). No caso das conjunções adversativas, a situação piora, pois o “mas” ou “porém” têm o poder de cancelar todas as considerações anteriores, de modo que o leitor precisa voltar e analisar novamente o início da frase para ver se algo mudou após a conjunção. Termina sendo uma questão neurolinguística. Imagine que eu diga “Dostoiévski tem ótimos conflitos, mas não tem estilo” e esqueça tudo o que eu disse antes do “mas”. Em literatura, a frase deve ser limpa, clara e com menos interrupções de sentido possíveis.

Também há um abuso da subjetividade nas descrições, “além de bonita, e ainda por cima daquelas inteligências vivas”. O que isso nos diz sobre a personagem? Que beleza é essa? O que seria uma inteligência viva, além de frase feita? Nada nos é mostrado, isso acontece mais de uma vez, como nesta descrição de Aliócha:

Talvez algum leitor pense que meu jovem fosse de natureza doentia, dada a arroubos, precariamente desenvolvida, um pálido sonhador, uma pessoa estiolada e macilenta. Ao contrário, naquele tempo Aliócha era um esbelto jovem de dezenove anos, corado, de olhar claro, que vendia saúde. Era até muito bonito, airoso, de estatura acima da mediana, cabelos castanhos escuros, rosto regular, embora de um oval meio alongado, olhos cinza-escuro brilhantes e acentuadamente rasgados, muito pensativo e de aparência muito tranquila.

[“Os Irmãos Karamazov”, ibidem.]

Vemos o mesmo problema se repetir. Mesmo se ignorarmos a grandiloquência, Dostoiévski não nos mostra a suposta beleza de Aliócha, nem seu modo tranquilo (embora o narrador sempre reitere isso), ao invés, nos dá um perfil físico malfeito e bastante lugar-comum, que não nos denota a psicologia da personagem. Afinal de contas, como é essa beleza airosa? Ou o que seria um rosto regular? Nenhuma imagem está, de fato, pintada. Com isso não quero dizer que um perfil literário deva ser um retrato falado, longe disso; repito: todas as imagens (incluindo perfis e cenários) devem possuir um caráter simbólico ou metafórico, sem isso tornam-se palavras vazias. Acima de tudo, as descrições devem ser claras para serem apreendidas de imediato. Essas descrições também devem ter unidade, fazendo sentido para a confluência de temas e ideias da narrativa; algo curioso é que Dostoiévski, tão logo nos joga um perfil físico, não faz mais referência a ele. Tolstói dizia ― nos lembra Nabokov ― que isso não é característico de um artista, que tem seu personagem em mente todo o tempo e sabe exatamente que gesto específico ele fará neste ou naquele momento. Dostoiévski definitivamente não “pensa” através de cenas, que é como pensam os grandes romancistas.

Porém, aqueles que tentam invalidar minha crítica por eu não saber russo poderiam argumentar que essa pobreza estilística é um problema de tradução, não da “obra original”. Sinto informar, mas tanto o crítico ferrenho Nabokov (que era russo e falava russo) quanto os tradutores Paulo Bezerra (que estudou na Rússia) e Oleg Almeida (bielorrusso), concordam nas questões relativas aos problemas do estilo de Dostoiévski em russo. Isso não é uma questão de mero juízo de gosto, mas um juízo de fato: o autor não escrevia objetivamente com clareza ou elegância, pelo contrário, sua escrita era feia, confusa e travada. Nos diz Bezerra, no prefácio a “Crime e Castigo”:

Ao traduzir Crime e Castigo, procurei manter os elementos de estilo que são peculiares ao do autor. Dostoiévski usa com certa frequência o travessão — ora para enfatizar um pensamento do narrador ou de alguma personagem, ora para inserir outras ideias na discussão, etc. —; emprega, a muito, duas (e às vezes até mais), adversativas contíguas, como noy odnako je, que traduzimos o mais das vezes como ‘mas, não obstante’; abusa do emprego do advérbio vdrug (que chega a aparecer cinco vezes em um parágrafo), que traduzi como “de repente”, “num repente”, “súbito”, “eis que”, etc. O discurso dostoievskiano nem sempre prima pela fluência, pela elegância.”

[Prefácio a “Crime e Castigo”, Paulo Bezerra, ed. 34]

Diante disso, convém aceitar que Dostoiévski não é um escritor sem estilo. Como nos lembra Albalat, até mesmo um mau estilo é um estilo.

VI – A VACA NO BANCO DE TRÁS DA MOTOCICLETA

Já Oleg Almeida ― que, diga-se de passagem, foi injustamente criticado e atacado por suas traduções fidedignas ―, ao ser questionado sobre as críticas à falta de estilo de Dostoiévski, dá uma resposta bastante diplomática:

Dou toda a razão àqueles estudiosos e críticos que reconhecem Dostoiévski como um dos maiores filósofos e pensadores religiosos da humanidade. […] Por outro lado, discordo de quem tomar Dostoiévski por um brilhante estilista (impressão que pode surgir com a leitura das suas traduções indiretas, feitas por interposição do francês). Seu estilo se caracteriza, de fato, por uma aspereza evidente e onipresente: as frases são longas e repetitivas, a narração vem pontuada por contradições, erros lógicos e termos inusitados, há trechos que destoam do texto principal, como se fizessem parte de outra história, e o baixo calão se mistura com a retórica mais sublime, o que transforma a respectiva tradução numa pedreira das grandes.

[Entrevista a Alan Martins, publicada no blog Anatomia da Palavra em 27 de fevereiro de 2018]

Novamente, vê-se a tentativa de salvar o autor com base em supostos méritos filosóficos, incorrendo num erro de causalidade eficiente. Se o autor escolheu um gênero ineficiente (o romance) para expor algo que seria melhor expresso em outro gênero (ensaio), isso não seria, em si, um grande erro filosófico? A forma do romance não é a mais própria para exposições filosóficas, justamente por sua forma ser dramática, representativa, mas não analítica ou retórica. Portanto, qualquer obra que perverta a causa final de um gênero artístico será má arte. Se alguém tentasse reunir as ideias filosóficas contidas num “romance de ideias”, não demoraria a constatar os maiores disparates possíveis, justamente pela natureza do gênero poético não ser própria para essa finalidade. Utilizar um romance com o fim de exposição é como tentar transportar uma vaca no banco traseiro de uma motocicleta: acidentalmente, pode até servir ao propósito imediato, mas teria sido mais eficiente chamar um caminhão de transporte, para início de conversa.

VII – BREVE NOTA SOBRE AS PROFECIAS DE ‘DOSTODAMUS’

Outro aspecto importante levantado por Nabokov é que, na Rússia, Dostoiévski é mais reverenciado como “místico” e “profeta” do que como artista:

Leitores não-russos não notam duas coisas: que nem todos os russos gostam de Dostoiévski tanto quanto os ocidentais, e que a maioria dos russos que gosta, o venera como místico, não como artista. Ele era um profeta, um jornalista falastrão e um comediante desleixado. Admito que algumas de suas cenas, alguns de seus tremendos papéis fratricidas sejam extraordinariamente divertidos. Mas seus assassinatos melosos e prostitutas piedosas não são suportados por um instante sequer ―  ao menos não por este leitor.

[Entrevista a Revista Playboy, 1964, republicado em “Strong Opinions”]

Para os leitores mais incrédulos de que alguns enxerguem Dostoiévski dessa maneira, basta uma lida no monólogo de Ivan sobre o grande inquisidor, em “Os Irmãos Karamázov”, para constatar um exemplo de alegoria (ou profecia) dostoievskiana. Diga-se de passagem, não seria o primeiro escritor russo a ter uma seita de seguidores a vê-lo como profeta ou místico (Tolstói que o diga), mas a explicação para a idolatria ocidental se dá, tanto para Nabokov, quanto para Oleg Almeida, graças às traduções inglesas e francesas, que “embelezaram o texto”  e serviram de base para outras traduções indiretas ao redor do mundo; sendo duas das mais antigas, pelas quais Dostoiévski ficou inicialmente conhecido no ocidente, as de Constance Garnett e Ély Halpérine-Kaminsky. A título de curiosidade, lembro-me de, certa vez, ter lido uma menção de Almeida a um punhado de críticos e escritores russos que também viam Dostoiévski com mais “ceticismo”. São eles, caso o leitor deseje investigar mais a fundo a questão: Mikháilovski, Soloviov-Andreiévitch, Veressáiev, Sviatopolk-Mírski e Búnin. É possível que seja bastante difícil encontrar as traduções dos autores citados em português, mas tudo vale a pena quando a alma não é pequena, não é mesmo?

VIII – UM LASCIVO LINGUARUDO: O NARRADOR

Outra grande marca de Dostoiévski é a onisciência do narrador linguarudo e intrometido. Em “Os Irmãos Karamázov”, passamos mais de cinquenta páginas acompanhando toda a justificativa sobre o porquê de as personagens serem da maneira que são; em suma: o autor nos explica em vez de mostrar as personagens em ação. Num trecho anteriormente citado, sobre a esposa de Fiódor Pávlovitch, vemos essa intromissão do narrador que para completamente o texto e divaga sobre uma história que não está nem ao menos relacionada com a narrativa principal. Isso para não mencionar as filosofadas baratas, lugares-comuns e mil e uma referências explícitas, como a Ofélia de Shakespeare.

Ainda sobre a suposta filosofia dos maus romancistas, como nos lembra Autran Dourado:

Se os filósofos nos seus melhores momentos são criadores e poetas, o inverso não podemos dizer dos poetas e criadores: os seus piores momentos são aqueles em que tentam ser filósofos, conforme diz bem Santayana, talvez com experiência de causa. O que não impede que os poetas e criadores usem a filosofia como matéria de criação. Mas aí eles estão sendo o que realmente são, poetas e criadores, e não filósofos. […] Não há filosofia, por mais profunda que seja, que justifique um mau romancista. Que o que há de pior em Aldous Huxley, por exemplo, é exatamente o seu lado de pensador; o que salva o romancista de Contraponto são exatamente as suas qualidades de escritor. O mesmo é válido para Mauriac: o que há de pior nele é o seu catolicismo. O que não significa negar a filosofia, a política e a religião como fontes inspiradoras e motivadoras do romancista. Para o que se quer chamar a atenção é para o fato de que o que é importante no romancista é a sua capacidade de dar vida através de recursos técnicos objetivos, e não as suas ideias e filosofanças. A sua função, já o disse, é bem mais modesta e por isso mesmo mais grandiosa.

[“Uma Poética do Romance”, Autran Dourado, ed. Rocco]

Dostoiévski era grande leitor de Victor Hugo, bem como de Walter Scott, Dickens e Balzac. Não à toa, os textos desses romancistas possuem muito mais em comum do que apenas o narrador linguarudo, sendo o melodrama social o principal parentesco entre Dostoiévski e Hugo. Ao ler esta análise de Llosa sobre “Os Miseráveis”, poderíamos jurar que está falando do típico narrador dostoievskiano:

O personagem principal de ‘Os Miseráveis’ não é o monsenhor Bienvenu, nem Jean Valjean, nem Fantine, nem Gavroche, nem Marius, nem Cosette, mas sim aquele que os conta e inventa, um narrador linguarudo e que surge continuamente entre as suas criaturas e o leitor. Presença constante, arrebatadora, a cada passo ele interrompe o relato para opinar, às vezes em primeira pessoa e sob um nome que nos faz acreditar que é o próprio Victor Hugo, sempre em voz alta e cadenciada, para interpolar reflexões morais, associações históricas, poemas, lembranças íntimas, para criticar a sociedade e os homens em suas grandes intenções ou suas pequenas misérias, para condenar seus personagens ou elogiá-los. […] Suas características mais óbvias são a onisciência, a onipotência, a exuberância, a visibilidade, a egolatria.

[“A Tentação do Impossível”, Vargas Llosa, trad. Paulina Wacht e Ari Roitman, ed. Alfaguara]

Pela descrição, notamos que o narrador onisciente filosófico freia bruscamente a ação, matando a narrativa e entrando no campo da exposição (não é à toa que Flaubert jogou esse tipo de narrador pela janela). Dostoiévski, sendo romancista “de teses”, didático, o utilizará frequentemente para nos expor uma ideia filosófica (o que é uma incoerência filosófica com o gênero narrativo). Apesar de Flaubert ter implementado o narrador imparcial no romance, a advertência sobre a incompatibilidade entre narrador filosófico e gêneros narrativos é mais antiga. Aristóteles ― que não chegou a ler um romance, mas já dispôs a base para qualquer gênero narrativo que preste ― já reclamava do mau uso dos narradores na Antiguidade:

Homero, por conta de muitas outras qualidades, é merecedor de elogios, mas o é, sobretudo, por ter sido o único, entre os poetas épicos, a compreender o papel do próprio poeta quanto a tomar a palavra [ou seja, o poeta enquanto narrador]. De fato, o poeta deve dizer o mínimo possível em sua própria voz, porquanto não é um artista da imitação ao agir assim. Os outros poetas mantêm-se o poema inteiro tomando a palavra, dedicando-se à imitação apenas de maneira breve e ocasional. Homero, ao contrário, após um curto introito, apressa-se em introduzir no palco um homem, ou uma mulher, ou um outro personagem, nenhum desprovido de caráter mas todos dotados de traços distintivos.” 

[Poética, parte XXIV, trad. Edson Bini]

Pela lógica simples e clara de Aristóteles, notamos que as intromissões do narrador são incompatíveis com o drama, com a ação, independente de quão “elevados e profundos” nos digam ser os temas. Ele é categórico: a ação deve vir em primeiro lugar, depois a moral e, por último, o pensamento (no qual podemos incluir a retórica, ideias filosóficas ou temas).

“Muito melhor seria se a tragédia, ainda que precária neste aspecto [moral], possuísse uma narrativa e estrutura dos atos. […] A narrativa é o princípio e, por assim dizer, a alma da tragédia, enquanto o caráter moral não passa de secundário […] a tragédia é imitação da ação e é, sobretudo, em virtude da ação que ela representa os agentes. Em terceiro lugar vem o pensamento, isto é, a capacidade de dizer o que é pertinente e apropriado, o que nos discursos formais é função da política e da retórica.

[Ibdem., parte XI]

Curiosamente, alguns críticos insinuam que Dostoiévski inventou uma “nova poética” para desculpá-lo de não seguir um padrão aristotélico. Nas palavras de Bakhtin: “Dostoiévski criou uma espécie de novo modelo artístico do mundo, no qual muitos momentos basilares da velha forma artística sofreram transformação radical” [“Problemas da Poética de Dostoiévski, ed. Forense Universitária, 5ª edição]. Bakhtin, em seu estudo linguístico, discorre sobre o “romance polifônico” e a “carnavalização”, dando tom de novidade a técnicas artísticas muito antigas, na tentativa de provar que esses são elementos pioneiros nos romances de Dostoiévski. Ele não foi o primeiro a levantar tais teorias, mas sem dúvida foi o teórico mais proeminente a propagá-las nesses termos. A grosso modo, a “polifonia” não é nada mais que o uso de múltiplos pontos de vista e vozes numa narrativa, já a “carnavalização” é o bom e velho contraponto (um “jogo de opostos”, antíteses ou a inversão da ordem das coisas, nas palavras do teórico). Esses dois elementos já existiam muito antes de Dostoiévski, tendo sido utilizados com muito mais maestria por seus antecessores ou mesmo contemporâneos, a exemplo de Flaubert, como já expus em meu ensaio sobre “Salammbô”, romance no qual o francês faz um dos mais sofisticados usos de pontos de vista e vozes narrativas de toda a literatura. De fato, há múltiplos pontos de vista e múltiplas vozes nos romances de Dostoiévski, mas asseguro que é um uso muito rudimentar quando os colocamos em perspectiva com outros escritores e seus usos de narradores (aliás, a única maneira de se estudar literatura é através da comparação entre textos, dizia Pound). Não me delongarei nos comentários à teoria linguística de Bakhtin, pois fugiria do escopo deste ensaio. Digo apenas que ninguém inventa a roda novamente, e que o objeto descrito por Aristóteles não é apenas um padrão da realidade, mas a própria realidade. Aos que fogem dela, convém internar no hospício.

IX– UM PORNÓGRAFO LUNÁTICO

Falando em hospício, não há galeria mais ampla de personagens delirantes, senis, epilépticas, histéricas, alcóolatras e psicopatas que a obra de Dostoiévski. Seria essa a profunda dimensão psicológica retratada por ele, de que tanto falam? Não julgo se o autor tinha obsessão por uns tipos louquinhos, mas é um exagero afirmar que Dostoiévski fez um grande retrato da humanidade e da experiência humana, como na obra de Shakespeare, que possui as mais variadas situações e tipos humanos. E como poderia sê-lo, se Dostoiévski só retratava, em maioria, psicopatas e malucos? Um retrato psicológico, em literatura, definitivamente não se dá da mesma maneira que um registro clínico da psicologia e psiquiatria (geralmente os profissionais dessas áreas têm dificuldades em compreender isso). O retrato deve ser uma representação dramática bem-feita do plano subjetivo da personagem, de seus conflitos e inquietações, não uma manifestação da própria loucura. Em suma: não basta registrar a loucura, de forma caótica e desordenada, é preciso representá-la bem.

Nabokov nos esclarece um pouco mais acerca da suposta condição universalmente válida das personagens de Dostoiévski:

O que quero transmitir é que, embora os homens e suas reações sejam infinitamente variados, dificilmente podemos aceitar como reações humanas as de um louco furioso ou de um personagem recém-saído de um hospício e prestes a voltar para lá”.

[“Lições de Literatura Russa”, ibid.]

A loucura é uma condição válida de se explorar como tema, porém não se trata da totalidade das experiências humanas possíveis, tampouco vale de algo numa obra por si mesma (feito qualquer outro tema para a arte). A Literatura não serve para nenhuma finalidade prática fora dela mesma, quando serve é por mero acidente. Aos que desejam observar uma descrição clínica em romances (novamente, mais um erro de causa aristotélica), seria mais eficiente ler artigos acadêmicos ou estudos médicos.

Já em termos de dramaturgia, as personagens dostoievskianas não possuem um arco dramático forte, de forma que não há desenvolvimento interior real que não seja forçado pelo narrador. Geralmente são personagens bastante planas (discordo de E. M. Forster neste aspecto, que diz, em “Aspectos do Romance”, que seriam todas esféricas) e, mesmo que passem pelos ambientes mais variados, de mosteiros a bordéis, sequer notamos o deslizamento entre vício e virtude definido por Aristóteles. Ao menos é o que acontece com a maioria das personagens de “Os Irmãos Karamázov”: Dimitri é sempre briguento, Aliócha, um jovem indeciso, Ivan, um cínico, Fiódor Pávlovitch, um homem vil, assim como o Homem do Subsolo. Isso não quer dizer que sejam personagens inerentemente fúteis ou rasas, mas que quase sempre se comportam da mesma maneira: ou não vemos nenhuma mudança significativa nelas ao longo da narrativa; ou, quando vemos, não são mudanças de si para si, mas uma mudança exterior, muitas vezes meramente ditadas pelo narrador, feito a bondade de Aliócha, que anda para lá e para cá com um linguarudo dizendo que ele é isso ou aquilo, mas, nas ações concretas, só vemos uma personagem meio indolente e tonta. Em “Crime e Castigo”, por sua vez, Raskolnikov mantém praticamente a mesma mentalidade até o fim do romance e não se redime por si, mas convenientemente através de Sônia, uma prostituta (que nunca vemos pegar no batente) que lhe mostra a redenção cristã através da leitura dos evangelhos e do “amor”. Convenhamos, há poucas coisas mais clichês e melodramáticas que o “arrependimento pelo evangelho” e a “redenção pelo amor”. O clichê, o melodrama e o choque ― todos formas de pornografia, no final das contas ―, nos levam a questionar qual prazer temos com esse tipo de leitura. Nabokov faz esses questionamentos partindo de “Crime e Castigo” e “Memórias do Subsolo”:

O prazer artístico que se obtém ao acompanhar Dostoiévski a suas excursões à alma doentia dos personagens é consistentemente maior que quaisquer outras emoções, sensações de nojo ou interesse mórbido por um crime? Na realidade, há até menos equilíbrio entre a conquista estética e o elemento de reportagem criminal, nos outros romances de Dostoiévski”.

[“Lições de Literatura Russa”, ibid.]

Sem dúvida, o crime de Raskolnikov nos choca. Porém, não é um homicídio tratado com Beleza, mas com sensacionalismo; temos, em absoluto, todos os mínimos detalhes do crime, porém não sabemos os reais motivos, a condição por trás dele é obscura. A grande desculpa dos dostoievskianos é atribuir as razões ao niilismo. Vejamos a icônica passagem do assassinato de Aliona Ivânovna a seguir, sem parar para examinar os longos monólogos do bêbado Marmeládov (o leitor sinta-se à vontade para checar a falta de verossimilhança desses monólogos depois). Desta vez, utilizo a tradução de Oleg Almeida (terceiro tradutor neste ensaio, para que não me acusem de ‘parcialidade’, escolhendo uma má tradução):

Ele tirou o machado, ergueu-o com ambas as mãos e, mal entendendo o que fazia, golpeou com o cabo de madeira a cabeça da velha, quase sem esforço, quase maquinalmente. Não tinha força nesse momento, mas, desferido o primeiro golpe, surgiu-lhe a força. A velha estava, como sempre, de cabeça nua. Ralos e levemente grisalhos, seus cabelos claros estavam, de modo usual, fartamente ungidos com óleo, reunidos numa trancinha igual a um rabo de ratazana e presos com um estilhaço de pente de chifre que sobressaía na sua nuca. O golpe atingiu justamente seu sincipúcio, devido à pequena altura dela. A velha soltou um grito, porém muito fraco, e de repente desabou toda no chão, levando as mãos à cabeça. Uma das suas mãos ainda segurava o “penhor”. Com todas as forças, Raskólnikov lhe golpeou duas vezes o sincipúcio, de novo com o cabo do seu machado. O sangue jorrou como de um copo emborcado, e o corpo dela caiu de costas. Ele recuou, deixando o corpo cair, e logo se inclinou sobre o rosto da velha: ela já estava morta. Seus olhos estavam arregalados, como se fossem saltar das órbitas, a testa e todo o rosto, franzidos e deformados por uma convulsão.

[“Crime e Castigo”, trad. Oleg Almeida, ed. Martin Claret]

É em especial neste capítulo que percebemos melhor os elementos da prosa jornalística de Dostoiévski. Apesar da aparente fluidez, quando comparado a outros textos dostoievskianos, são tantos detalhes descritos minuciosamente, que o texto mais parece um relato de reportagem criminal ― talvez a tradução de Oleg Almeida tenha sido muito precisa em utilizar a palavra “sincipúcio” em vez de cabeça ou crânio, reforçando o vocabulário forense de folhetins policiais. Ao contrário da tragédia grega, na qual as mortes ocorriam fora de cena para não chocar os espectadores, Dostoiévski usa e abusa desse recurso burlesco: não contente em mostrar os pormenores do assassinato da odienta Aliona Ivânovna, mostra também a morte igualmente sangrenta de sua irmã, Lisaveta. Utilizar esse recurso para impressionar os leitores uma vez, vá lá, mas duas vezes em sequência? O impacto que os leitores menos experimentados sentem com essa cena se dá mais pelo exagero que pelo drama da situação (que, por si, já seria suficientemente angustiante). Talvez uma leitura do capítulo VII dê mais perspectiva para que o leitor possa entender essa problemática.

Denomino “choque”, ou “emoção nervosa”, qualquer recurso dramático fácil, feito para comover as massas (nada mais facilmente impressionável que a dócil massa). Sobre esse ponto, cabe lembrar a elucidação de Joseph Campbell, ao tratar da obra de James Joyce, sobre a pornografia e arte imprópria:

Joyce faz a distinção entre arte própria e imprópria. Arte própria é arte em serviço do que é propriamente função da arte. Arte imprópria é arte em serviço de algo diferente. E, diz Joyce, arte própria é estática e arte imprópria é cinética [do grego kínesis, movimento]. Arte estática causa suspensão estética. Mas, então, qual o oposto da arte estática? O que Joyce quer dizer por arte cinética? Ele nos diz:

‘Desejo é o sentimento que nos incita a buscar algo, repulsa é o sentimento nos incita a repelir algo, e essa é a arte imprópria, que visa excitar esses sentimentos em nós, seja na comédia ou tragédia’ [The Critical Writings of James Joyce, NY, Viking Press, 1959, p. 143]

Arte pornográfica é arte que excita o desejo. Não é arte própria.  […] Excita desejo para o objeto representado; não é a reação com relação à obra em si.

Outro tipo de arte imprópria é a arte que critica a sociedade, arte a serviço da sociologia [ou filosofia]. Tal arte excita a repulsa, e Joyce a chama de ‘arte didática’. Aqueles que produzem tal arte, eu chamo de ‘pornógrafos didáticos’. Quase todos os romances desde os tempos de Zola são pornografia didática. A fórmula foi estabelecida por ele, e dura até hoje.”

[“Mythic Worlds, Modern Words: on the art of James Joyce”, Joseph Campbell, tradução livre.]

Nota-se que pornografia, aqui, não tem relação com o que é mostrado na obra, mas com o como é mostrado. Uma mulher nua, numa pintura, pode ser retratada tanto artisticamente quanto pornograficamente. Temos a Vênus de Botticelli, com sua nudez inocente, que em nada nos choca, pelo contrário, nos encanta e provoca a contemplação estética. Agora, una as técnicas de pintura de um Caravaggio com modelos siliconadas e poses ginecológicas e teremos exatamente o tipo de arte imprópria feita pelo pintor italiano Roberto Ferri (ao menos em seus piores momentos). É a esse tipo de choque, ou pornografia, que vem da representação, não do objeto representado, que me refiro.

Elevação estética nunca favoreceu grandes tiragens ― era exatamente isso que acabava com as vendas de Flaubert, por exemplo, mas que o consagrou postumamente ― e sabemos que aqueles recursos dramático baixos, com direito a sangue esguichando na página, agradam bastante os leitores mais ingênuos, ou com mero mau gosto. Literatura que se utiliza desses elementos para vender mais exemplares é arte imprópria. Não estou dizendo que arte que vende, isto é, que porventura tornou-se um sucesso, tenha inerentemente má qualidade ou seja arte imprópria; estou falando que arte feita para vender, comercial, é arte imprópria. Quem investiga um pouco da biografia de Dostoiévski rapidamente descobre o fato de que ele escrevia com pressa,  para vender e pagar suas dívidas de jogo. Muitos atribuem a má escrita de Dostoiévski à sua insolvência financeira, inclusive ele mesmo, como expôs numa carta ao irmão:

Você sempre me escreve notícias como esta, de que Gontcharov recebeu 7.000 rublos por seu romance, e que Kathov(de quem eu pedi recentemente 100 rublos por folha) ofereceu a Turgueniev 4.000 rublos por seu ‘Um Ninho de Nobres’ – o que significa dizer que ele recebeu 400 rublos por folha. (Li, finalmente, o romance de Turgueniev. É, de fato, excelente.) Meu amigo! Tenho consciência de que não escrevo tão bem quanto Turgueniev; ainda assim a diferença não é realmente tão grande, e espero com o tempo escrever tão bem quanto ele. Por que então, em minha indigência, permito-me receber apenas 100 rublos por folha, enquanto Turgueniev, que tem 2.000 servos, recebe 400 rublos? Sou pobre, e por isso tenho que escrever com muita urgência e por dinheiro; consequentemente, tenho que desperdiçar tudo o que tenho.

[Dostoiévski, em carta ao seu irmão Mikhail: Semipalatinsk, 9 de maio de 1859]

Também diz Oleg Almeida, continuando sua fala na já referida entrevista:

Dostoiévski escrevia, como se diz, ao correr da pena, cumprindo as exigências de seus editores, apressando-se para não estourar os prazos e, ao mesmo tempo, não procurando ser breve, pois era pago por lauda e necessitava resgatar os pertences de sua família que penhorava volta e meia em troca de um pedaço de pão ou um feixe de lenha. O que inspirava Dostoiévski não era “a arte pela arte”, mas, sim, aquele desespero cotidiano que o perseguia, aquelas pobreza e injustiça que nunca o deixavam em paz. Será que, nessas condições deploráveis, alguém se preocuparia em excesso com a perfeição estética dos seus textos? E será que as ideias de um escritor renomado não valem bem mais do que sua maneira de expressá-las? Todas as vezes que me encarregam de traduzir Dostoiévski, faço essas duas perguntas a mim mesmo.”

[Entrevista a Alan Martins, ibid.]

Para um filósofo, a perfeição estética dos textos vale menos que as ideias. Para um romancista, como vimos, não. E não estou fazendo um juízo moral ou julgando a pessoa de Dostoiévski pelas dívidas e problemas financeiros, mas esse estilo de vida é, por óbvio, incompatível com qualidade artística. Apenas aponto o fato de que ele escreveu às presas, sem esmero, alguns dos seus romances mais famosos: Crime e Castigo (1866), O jogador (1867), O idiota (1868), Os demônios (1872), Os irmãos Karamázov (1880). São obras feitas para vender, incitando o leitor a virar as páginas pela pornografia ou didatismo, não pelo êxtase estético; prazer da emoção barata, não da contemplação de uma perfeita organização formal, típica dos romancistas de primeira classe. Portanto, mais do que uma obra didática, com o fim de provar ou expor alguma ideia, temos uma pornografia lunática, produzida freneticamente por dinheiro e às custas da sanidade mental do autor.

X– UM EPÍLOGO SEM EUFEMISMOS

Com isso, considero concluída minha exposição sobre Dostoiévski. C’est fini. Não tenho absolutamente mais nada a dizer sobre a obra dele em si, tampouco tenho vontade de retornar a esse assunto no futuro. Para mim, a questão está mais do que encerrada. Falarei agora brevemente sobre o que me aconteceu depois da primeira publicação deste ensaio e das reações adversas que ele causou nas mais variadas pessoas, de Q.I. 20 a 220.

Passados cinco anos desde que o escrevi ― em dezembro de 2017, no início de minha atividade crítica, quando eu contava meus 22 anos ―, resolvi republicá-lo agora com melhorias estilísticas, retificando citações, adicionando novos fatos e análises, além de remover alguns trechos que julguei mais fracos (a última parte, mais elogiosa, “Um Dramaturgo que a Rússia Jamais Viu”, foi inteiramente para o lixo). Porém, garanto que o todo permanece o mesmo. A versão original contava com um tom mais brando, e até mais respeitoso, se comparada com a acidez de meu estilo hoje.

Faço mea culpa e admito ter cometido o erro grave de dar uma colher de chá aos admiradores de Dostoiévski, mesmo erro cometido por Nabokov, como ele mesmo confessou, anos após ministrar suas aulas de literatura, em entrevistas no volume “Strong Opinions”. Acima de tudo, foi um erro contra minha própria consciência. Isto não deveria precisar ser explicitado, mas é preciso que eu o diga: não critico um autor por algum ódio inerente a ele, ou por preconceitos anteriores às leituras das obras, muito menos por quaisquer motivações ocultas. Critico para expor minhas próprias experiências e minhas visões de literatura que julgo dignas de serem compartilhadas, e isso tem mais a ver com minha integridade intelectual do que com aplausos. Aliás, se eu tivesse prurido por aplausos, teria sido melhor ficar bem quietinho e tecer longos elogios às obras que todo mundo gosta, me convencendo histericamente de que está tudo bem. Por causa de minhas opiniões fortes, fui xingado, achincalhado e difamado gratuitamente (isso para não falar dos plagiadores que, por birra infantil e mau-caratismo, copiam meu trabalho sem jamais dar o mérito). Mas, sobre esses ataques, já discorri no artigo “A Crítica dos Imbecis”, cujo início há muito eu pretendia que fosse o epílogo desta reedição.

Dentre os comentários a este ensaio, que não possuem solidez nem para serem chamados de resposta, não faltou gente para tentar invalidá-lo, alegando esta ou aquela justificativa que já estava refutada nele. Para citar o caso mais notório, fui insultado pelo Sr. Olavo de Carvalho ― filósofo cuja obra tenho grande apreço ― com uma frase feita de péssimo gosto: “Paulo Cantarelli criticando Dostoiévski é tão poderoso quanto eu criticando Deus”, sem argumento algum. Contudo, quando o questionei, por intermédio de terceiros, sobre o que houve para eu receber o insulto gratuito, o filósofo removeu a postagem. Confesso que isso me impressionou, pois, como ele não removia postagens nem mesmo sob ordens judiciais, eu esperava alguma argumentação como resposta. Àqueles que dirão que ele não argumentou nada pela insignificância deste que vos fala, parece que o mesmo Olavo de Carvalho passou algum tempo refletindo para justificar seu mau gosto literário. Meses após o incidente, numa de suas aulas de filosofia, como quem não quer nada, ele afirmou que: “há grandes romancistas que não são grandes dominadores da linguagem, como, por exemplo, Balzac e Dostoiévski. Eles não escrevem tão bem quanto os outros caras…” [aula 534 do COF, minuto 55:50]. Depois disso, prossegue em malabarismos retóricos para tentar justificar a existência de seus maus escritores preferidos. Seja como for, Olavo está desculpado pelo insulto, mas não pelo erro filosófico (que já  foi discutido ao longo deste ensaio, quando tratei das causas aristotélicas).

Acredito que minhas críticas estejam mais do que claras, não faltando fundamentação para as pessoas que possam “se sentir confusas com os valores implícitos de minha análise”. Também creio que abrandar o tom, ou utilizar eufemismos para agradar, foge ao verdadeiro debate em busca da verdade. Digo palavras duras e verdades indigestas. Desse modo, posso ser compreendido de má fé, mas jamais mal compreendido. Aliás, digo muitas coisas, mas sou julgado pelo que não digo. A verdade é clara e sem arrodeios. Quando há muitas justificativas para mascarar um fato ― exatamente como fazem para defender Dostoievski a todo custo ―, saiba que há algo de errado. Não nego que haja escritores, inclusive bons, influenciados por ele, muito menos nego que ele seja um autor influente, pois isso seria negar o óbvio. Não nego que possa haver um punhado de boas cenas em suas obras, a cada mil páginas. Também não nego que talvez possa haver algum valor a ser extraído de seus escritos, embora, para mim, inexista. Não nego que alguém possa se divertir lendo Dostoiévski, nem nego que talvez seja melhor lê-lo do que ler um best-seller moderno; sou completamente indiferente a essas questões. Não me interessa a lista infindável de críticos que elogiem este ou aquele escritor; crítica literária não é um catálogo de opiniões cruzadas para validar uma opinião posterior. Crítica literária é um testemunho solitário, incomunicável se o leitor, do outro lado, não tiver pelo menos alguma bagagem em comum com o crítico. Concorde ou discorde, é preciso saber separar fato de opinião, juízo de fato de juízo de valor.

Literatura sempre foi feita por poucos e para poucos, logo, não espero ser amplamente compreendido. Um efeito colateral da aquisição de cultura é que, quanto mais próximo se está dos valores universais, comuns aos grandes homens de todas as épocas, mais se está longe de seu próprio tempo. Quanto mais fundo mergulhamos na cultura, mais sabemos, porém mais incomunicáveis ficamos com o mundo da superfície. Até que um dia chegará outro mergulhador e se deparará com nossa ossada submersa, apenas para notar que em breve ele também perderá o fôlego.

Comentários

Uma resposta para “Uma espinha no nariz da Literatura Russa”

  1. Avatar de Arthur S
    Arthur S

    Já estive entre aqueles que se indignaram ao saber de uma crítica a Dostoiévski pelo fato de a leitura de Irmãos K. ter me levado a refletir bastante, mas, após ter tido contato com outros autores, percebo que só não conhecia coisa melhor mesmo. As críticas ao Dosto são, realmente, inegociáveis. Desafio qualquer um ler Púshkin e continuar aguentando as 250 páginas do interminável julgamento da morte de Fiódor Karamázov. O júbilo será semelhante ao descobrir que um violinista solo consegue fazer muito mais música com uma partita de Bach do que o André Rieu tira com toda aquela parafernalha e sua platéia de velhinhas emocionadas.

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