#05 – A Literatura é bela, ‘mais’ não é útil

E lá vamos nós…

Eu sei, EU SEI que você está se coçando para corrigir esse “mas” aí do título (eu também estou, e sei que algum dia alguém tentará usar isso contra mim). Mas estamos seguindo as ordens dos meretríssimos do Supremo, pois, apesar do que bem dizia o grande gramático romano Tiberius Claudius Donatus – “a gramática faz curvar-se diante dela até os imperadores” – as regras da gramática latina não têm jurisdição sobre o Brasil. #SOBERANIA.

Ontem, particularmente, recebi algumas perguntas na caixinha do Instagram, que sempre está cheia de curiosos com questionamentos inocentes, mas também de boas cabeças críticas que se recusam a concordar bovinamente com qualquer coisa. Bravo, bravo, se todos pensassem dessa maneira, um dia pararíamos de pagar impostos e nos veríamos livres como se diante da queda do Muro de Berlim.

Mas, como NÃO ESTOU incitando a desobediência civil, nem legítima defesa sonegação fiscal,  chega de sonhos anárquicos. Vamos para assuntos menos espinhosos (ou que ao menos deveriam ser).

I – Oscar Wilde publicou seu prefácio há 134 anos e as pessoas ainda não o entenderam

Sim, o tempo voa, parece que foi ontem que recebemos a notícia de que “O Retrato de Dorian Gay Gray” foi censurado e seu autor escreveu um breve prefácio que mudou os rumos da História da Arte. Eu sei, ninguém aqui estava vivo naquela época, mas isso não torna o fato menos dramático.

É precisamente nas épocas em que livrinhos ficcionais são penalizados, que estamos diante duma civilização em crise; ou, em sociedades menos evoluídas, quando o Léo Lins é condenado por contar piadas (versão tupinambá da censura de livros, já que todo mundo sabe que ninguém realmente lê, no Brasil).

Portanto, fiquem tranquilos: romances anticomunistas, tratados de metafísica, manuais de guerrilha urbana e guias de Bitcoin para privacidade financeira e defesa contra a inflação continuarão permitidos. Subversiva mesmo é aquela piada sobre minorias, pois nada pior do que ser agredido a risadas. 

Voltando ao assunto, apesar de estar completamente errado em seu ensaio “A Alma do Homem Sob o Socialismo”, no qual faz uma lambança tentando conciliar individualismo com coletivismo, nosso querido dândi dublinense era sincero o suficiente a ponto de não temer a própria estupidez; talvez fosse destemido demais nisso para seu próprio bem, porque resolveu processar por difamação o Marquês de Queensberry, pai de seu amante, Lord Alfred Douglas (entre quatro paredes, Bosie).

Numa das reviravoltas mais óbvias da História, Lord Queensberry reverteu a ação de calúnia em condenação de Wilde por “indecência grave”. Em defesa de Oscarzinho, o Marquês de Queensberry parecia muito mais burro do que realmente era, pois escreveu no bilhete que motivou o processo:

“Para Oscar Wilde, posando de somdomita [sic].”

Mais quem diria, não é mesmo, que alguém incapaz de escrever sodomita corretamente pudesse armar uma arapuca jurídica dessas?

Wilde cumpriu sentença por dois anos com trabalhos forçados que exauriram sua saúde para sempre. Dessa época infeliz, contudo, ele escreveria um dos mais belos e sinceros relatos autobiográficos em seu “De Profundis”, carta para seu então ex-amante, na qual relata as duras condições de seu aprisionamento, as hipocrisias da sociedade vitoriana e, para a surpresa de zero presidiários, seu encontro com Jesus Cristo, que o levou à conversão ao catolicismo em seu leito de morte; mas não antes de uma recaída, quando fugiu para Nápoles com o amor de sua vida. A brincadeira só durou três meses, porque a esposa de Wilde e a mamãe de Bosie cortaram as respectivas mesadas dos garotões.

Com seu falecimento precoce, de meningite aos 46 anos – maldito azar, só faltavam 28 anos para a descoberta da penicilina –, Wilde nos legou de herança alguns trabalhos breves, porém marcantes, como a peça “Salomé” e os diálogos ensaísticos de “Intenções”, nos quais vemos a discussão de conceitos como a arte pela arte e a crítica impressionista, que, apesar de nem sempre acertarem filosoficamente na justificativa estética de suas proposições, são belas e válidas tentativas.

II – Mas Paulo, eu não posso usar Literatura para mais nada?

Claro que pode: até hoje uso meu exemplar de “Irmãos Karamázov” como calço de mesa, o fim mais útil que encontrei para calhamaços que jamais pretendo reler ou passar adiante, por motivos óbvios.

Você tem o direito de ler o que quiser, como você quiser, para o que você quiser; apenas não ache que essa liberdade signifique algo. Gostar de um livro não o torna bom, tampouco achar uma finalidade secundária para ele a tornará principal. Você pode passar pasta de dente no pão ou colocar óleo diesel na xícara de café, vá em frente, não é ilícito (nunca entendi por que usam tanto essa palavra nas minhas caixinhas de pergunta).

De igual modo, você é livre para tentar aprender filosofia ou gramática simplesmente lendo livros de Literatura, mas duvido muito que obterá êxito. Há métodos mais próprios e eficientes para o domínio dessas disciplinas, que devem ser procurados em primeiro lugar.

Se um livro de ficção não é bem escrito, não serve para mais nada, pois nada vale. Qualquer malabarismo verbal para justificá-lo é sempre relativismo puro e simples. Não, não, livros bem escritos e belos jamais poderão ser vazios de conteúdo. Em Arte, não há forma sem conteúdo, embora exista o conteúdo disforme.

Insisto – e desculpem os leitores antigos a quem devo parecer uma vitrola quebrada – que deem uma chance à Beleza em primeiro lugar; porque é da contemplação desinteressada que costumam surgir os mais surpreendentes interesses. Sim, sim, Literatura melhorará sua capacidade imaginativa, lhe permitirá conhecer novos tipos humanos, culturas, línguas, filosofias, ideologias, modos de pensar muito diferentes dos seus, lhe trará mil vivências em uma única vida, contanto que você não se importe com nada disso. É como quando Salomão pediu a Deus sabedoria e recebeu também fortuna, só que a Literatura provavelmente te deixará mais liso e, quiçá, mais sábio (quem manda ficar caçando edições de luxo?).

IIIA Arte não pede licença

Mesmo após tanto tempo, parece que ainda nos sentimos obrigados a pedir desculpas sempre que dizemos que a Arte precisa ser… bela. Oh, que coisa antiquada: nós modernos preferimos bater palmas para o pôr do sol, observar mictórios em museus e ler poemas solipsistas sem verso nem estrofe.

Ao declararmos que toda Arte é inútil, a mentalidade burguesa nunca se conforma e precisa achar fins mediatos para justificar os melodramas que tanto gosta (ou seu tempo ocioso). No final das contas, Wilde está certo ao dizer que toda crítica é uma forma de autobiografia: sua posição em relação às obras de Arte revela muito sobre quem você é; e o burguês se sente qual Caliban defronte ao espelho (agora você me pergunta: quem diabos é Caliban? E eu respondo que você ainda não leu “A Tempestade”…).

Se você se incomoda profundamente com as puladas de cerca de Emma Bovary, ou com a mansidão do corno Charles, certamente você não foi capaz de ver as maravilhosas pessoas que aquelas personagens poderiam ter sido, se não cedessem a seus vícios e fraquezas. Se Cleópatra lhe é uma balzaquiana depravada, não a encarnação da feminilidade, e Marco Antônio um “beta” desesperado, não um grande homem apaixonado em decadência, isso diz mais sobre você do que sobre a peça. Novamente, o monstro se olha no espelho e se enfurece com o que vê (Caliban é um monstro, ok?).

Para contemplar a Grande Arte esteticamente, é necessário ter generosidade de espírito: somente com um profundo amor cristão, enxergando o Homem por suas mais elevadas possibilidades, veremos diante de nós todas as potências daquilo que poderia ser, e reconheceremos as infelicidades – trágicas ou dramáticas – do porquê jamais será.


Este e-mail foi escrito ao som de “Mild und leise”, de Wagner, interpretado por La Superba, Montserrat Caballé. Um final de ópera trágico para essa farsa chamada Brasil.

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