E lá vamos nós…
A niusletter de hoje, escrita na manhã de sábado, depois de eu tomar uma xícara de leite quente (agora tenho de beber café com rum todas as manhãs para entreter vocês?), chegou mais tarde, mas chegou. Nunca reclame de um artista que manda as coisas mais ou menos no prazo. Vamos discutir o que realmente importa: Literatura. Ou alguns aspectos dela.
Lembrando: se você gostar desta newsletter, ou tiver alguma pergunta para ser respondida no próximo podcast, responda este e-mail.
I – Sinceridade pra que te quero?
O escritor irlandês Oscar Wilde – sim, era um comedor de batatas (e outras coisas) dublinense, compatriota de Joyce, embora todos pensem que fosse inglês – certa vez disse que o “cínico é aquele que sabe o preço de tudo e o valor de nada”. Isso explica um pouco do porquê de tantas pessoas fingirem gostar de coisas muito chatas, com as quais elas realmente não se importam, como, por exemplo, Literatura.
Sabemos que rinhas de galo são muito mais interessantes e rentáveis do que a CLT, mas nada dá tanto prestígio quanto poder dizer garbosamente numa festa que você está tentando terminar pela terceira vez “O Idiota” do Dostoiévski (sem ofensas), ou questionar, pela enésima vez desde que saiu do ensino médio, se Capitu traiu ou não Bentinho (afff…).
Machado de Assis, aliás, é queridinho dos inteligentinhos, que fingem lê-lo, quando nunca o fizeram, como é claramente o caso de alguns meretríssimos da suprema corte. Seja como for, muita gente que não está nem aí para Literatura, apenas finge que gosta, pois essas coisas dão status e (ainda) não te mandam para a prisão, feito os galinhos briguentos.
Portanto, o primeiro passo para se tornar um bom leitor é pensar: eu realmente me importo com isso que estou lendo? Leia apenas o que for mortalmente importante para sua alma.
II – Como não enlouquecer no Brasil?
Outro dia, um leitor me perguntou como não enlouquecer no Brasil. Há uma maneira muito simples: faça como eu fiz e pegue um avião para fora desse hospício com oito mil quilômetros de costa.
Mas há uma alternativa mais barata: a ti mesmo sejas verdadeiro, como diz Polônio, em Hamlet. É um preceito muito simples, mas, contanto que você minta para os outros e jamais para si mesmo, pode evitar o destino de Sócrates, certo? Não. As chances de enlouquecer no processo são grandes, pois, com o tempo, você corre risco de acreditar no que sai de sua boca, não no que entre pelos olhos e ouvidos.
Acredito piamente que viver por um dos transcendentais – Verdade, Bondade e Beleza (sim, sei que alguns não consideram este último um transcendental) – nos leva irremediavelmente para uma busca pela unidade entre os três, em nossas vidas. Acontece que, no Brasil, não há beleza, bondade nem verdade que venha sem punição. No país do avesso, onde as leis da Física só não foram anuladas por não estarem sob jurisdição do STF, convém manter a vida interior em segredo.
Para nossa sorte, a apreciação do Belo é uma das coisas mais acessíveis que há (não vou fazer nenhuma piada infame com o pagodeiro, não vou…).
III – O que você acha de…?
Sem dúvidas, a pergunta mais repetitiva, monótona, cujo teor sempre me faz querer bater a cabeça na parede até desmaiar (não necessariamente a minha) é: o que acha de [preencha aqui com seu escritor preferido].
Em primeiro lugar, detesto-as porque muitas dessas pessoas simplesmente chegam, sem conhecer a mim ou a meu trabalho, e perguntam opiniões como quem pergunta as horas ao porteiro. Não fazem ideia do arcabouço mental por detrás duma simples resposta, e muitas delas certamente me tomam por idiota, num clássico sintoma de Dunning-Kruger. E ainda há aqueles que, insatisfeitos por não terem seus vieses confirmados, ouvindo a opinião alheia, ainda escrevem longas difamações, peidando-se de ódio (não se deveria perder tanto tempo com aquilo que se julga irrelevante). Mas não é precisamente isso que me irrita, mas a preguiça.
O brasileiro sofre de uma preguiça intelectual congênita, uma indolência metafísica que lhe corrói a alma, uma espécie de acídia mental. Em todos os meus podcasts, ensaios e aulas, mais do que respostas, busco alimentar a curiosidade dos leitores com as perguntas corretas.
É marca maior em personalidades menores o choque ao se deparar com opiniões incomuns ou raras; nada choca o homem de estudo, senão a falta de zelo para com a verdade.
IV – Literatura de verdade
Acontece que muitos leitores, eu sei, buscam alguma confirmação de que estão no caminho certo, por isso perguntam; outros buscam apenas indicações para uma leitura agradável. Não falo para esses últimos, os curiosos, mas nada tenho contra eles.
Há uma noção absurda, no Brasil, de que bons leitores dão em touceiras: basta adubá-los com livros de qualquer qualidade, e, voilà, temos um indivíduo com senso crítico, aculturado, inteligente, que se informa através da Revista Veja (isso ainda existe?).
Na realidade, bom leitor é quem foi educado para tal, aquele que – além de possuir um bom dicionário – compreende, primariamente, seis elementos:
1. Gênero literário: sabe em qual gênero lê, com suas convenções, e o que se deve esperar de cada obra para o máximo de aproveitamento da leitura. O bom leitor não lê um romance esperando conclusões de um tratado filosófico.
2. Estética: ele deve saber o mínimo dos fundamentos filosóficos que dão sustentação à Arte; nenhum grande leitor jamais poderá ser um ignorante que caia em engôdos relativistas.
3. Estilística: precisa saber o que é Estilo, ser capaz de enxergar como o autor trabalhou o conteúdo na forma e precisa saber quando está sendo passado para trás por um mau escritor.
4. Estruturação: consegue relacionar as partes do que leu com o todo; sabe relacionar paralelismos, captar as causalidades da obra e relacionar técnicas sofisticadas na montagem da narrativa.
5. Técnicas: conhece, nem que seja por alto, o conjunto sistemático de meios pelos quais o autor causou um efeito específico.
6. Ouvinte: é ouvinte do Entender Ficção, o podcast do leitor inteligente de literatura (achou que eu perderia o jabá?). Se não ouviu o último episódio, ouva.
Somente tendo consciência desses aspectos basilares da Literatura, poderá o leitor construir, em seu espírito, um verdadeiro juízo crítico. E, além disso, claro, ele deverá ler as melhores entre melhores obras, porque uma vida só não basta para lermos tudo o que nos interessa.
Voltarei nos próximos e-mails com algumas listas e indicações, além de mais notícias sobre o Clube Crítico, no qual vamos finalmente poder falar mais abertamente sobre alguns temas espinhosos para a maioria dos incautos.
Nos vemos no próximo sábado.
P.S.: se meu tom foi mais grave, neste e-mail, perdoe-me, pois estou estudando as tragédias de Shakespeare. É difícil manter o tom espirituoso enquanto se lê isso e se assiste ao Brasil colapsar democraticamente, à distância.
Este e-mail foi escrito ao som da “Apassionata”, mov. III, de Beethoven, por Maurizio Pollini.
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